Bem-Vindo!

O Dama da Noite como todos sabem fechou as portas no lindo casarão da Gomes Freire no ultimo dia do ano de 2005 mas o nome já é referencia cultural e de boa musica. Por isso estaremos ocasionalmente recomendando eventos e shows que merecerem o nosso apoio. Vejam fotos
http://picasaweb.google.com/marcia.dantonio/DamaDaNoite#

domingo, 7 de dezembro de 2008

Outra preciosidade que eu achei no blog do Marceu Vieira http://oglobo.globo.com/rio/ancelmo/marceunalapa/

Uma cronica tirada do seu livro ( eu sabia que ele é compositor, mas não sabia que tinha um livro de cronicas) "Nada não e outras crônicas", Editora Mauad.

Muito triste, real e bonita essa cronica. Vale pena ler e comprar o livro, pois como essa devem ter outras. Já comprei!

"Em Copacabana

Comprava dois exemplares do mesmo jornal todas as manhãs sem perceber que era mais um gesto em seu cotidiano saturado de manias. Sequer os abria. Deixava-os empilhados no banquinho próximo à porta da cozinha, ao lado da pia, de onde ganhavam o mesmo destino, sempre às terças-feiras, dias em que recebia sua única visita da semana, a da faxineira.

Fazia isso há 12 anos, desde a morte da mulher, mas ainda não tinha se dado conta de que o hábito perdera o sentido. Pelo menos até aquela manhã, quando acordou com a sensação de que não só essa, mas muitas outras manias haviam deixado de ter razão.

Não gostava de ler jornais já mexidos. Por isso, comprava dois - um para ele, outro para a mulher. E, desde que ela morreu, sem lhe deixar filhos, manteve a rotina. Primeiro, pelo apego à convivência de 40 anos de um casamento que ele supunha feliz. Depois, simplesmente, por não atinar para a nova realidade de viúvo solitário.

Desistira da comodidade das assinaturas porque, pelo menos uma vez por semana, o distribuidor estranhava a dupla encomenda e lhe mandava um só exemplar. Nessas vezes, telefonava enfurecido para o jornal e só conseguia domar a ira depois que lhe mandavam um sobressalente. Sentia-se tão violentado com o esquecimento que a repetição do descuido o levou a comprar os jornais na banca da esquina.

O jornaleiro não estranhava mais. Ele chegava e nem precisava pedir. Os dois exemplares iam logo sendo acomodados dentro do saco plástico, mal sua presença era notada. No início, ainda perdia algum tempo na esquina, retirando os jornais da sacola para dar, ali mesmo, uma passada de olhos nas manchetes de primeira página. Mas, ultimamente, nem isso fazia. Voltava para casa e os depositava no banquinho de sempre sem os abrir.

Não era a única mania. Todos os dias, por volta das 8h, parava no mesmo botequim da Rua Bolívar, pedia o café com leite "mais escuro do que claro" de sempre e reclamava se a xicrinha servida não fosse a que ele havia comprado para deixar ali. Sabia quando o tentavam enganar. A dele, como repetia diante do balcão, tinha um pequeno lanho na asa, feito por ele próprio com a ajuda de uma faca pontuda.

Em casa, a faxineira se aborrecia com sua insistência com os mesmos dois pares de toalha de banho, bordados com as iniciais dele e da falecida. Se calhasse de os dois estarem sujos ao mesmo tempo, ralhava com a empregada, que deveria ter o cuidado de lavar semana sim um, semana não o outro.

Também franzia a testa e resmungava coisas inaudíveis se a faxineira retirasse da mesinha de cabeceira os dois vidros de perfume que ele e a mulher usaram nos últimos anos de convivência - o dele, um Dakkar já vazio; o dela, um Courréges pela metade e já quase sem cheiro.

Sentia-se só, mas não buscava remédios que lhe amenizassem o sentimento. Preferia a solidão aterradora às conversas sem compromisso a que velhos iguais a ele se entregavam nos fins de tarde na praça de duas ruas adiante. Freqüentava a praça - mas se sentava longe e, em vez da conversa ou do jogo de cartas, atirava milho aos pombos.

Os antigos amigos de repartição , de quem gostava mais, tinham sumido depois da aposentadoria. Ou morrido. O telefone de casa só tocava quase que por engano ou uma vez a cada duas ou três semanas, quando a única sobrinha, filha de sua única irmã, também já morta, ligava para saber "se o tio ainda estava vivo", como ela gostava de brincar.

Já havia passado dos 80, e a lembrança da idade era, para ele, um doloroso exercício de memória. Tinha medo de morrer, mas mentia a si mesmo e aos poucos companheiros de caminhada no calçadão, dizendo que a morte significava a decomposição natural não apenas das boas coisas, mas também das dores e dos fracassos acumulados ao longo da existência. E que essa certeza o consolava.

Naquela manhã, no entanto, não desceu para caminhar no calçadão nem para comprar os dois jornais. Também não apareceu no botequim da Rua Bolívar para tomar o café com leite "mais escuro do que claro", nem para dar milho aos pombos na pracinha adiante.

Era uma terça. A faxineira abriu a porta com o telefone já tocando na sala, incomodada com o som alto da campainha sem ter quem a ouvisse. Era a sobrinha, querendo saber "se o tio ainda estava vivo". Dessa vez, a teimosia do telefone não dava certeza.

Não estava. Abraçado aos dois pares de toalhas com as iniciais dele e da mulher, segurando nas mãos juntas o frasco vazio de Drakkar e o de Courréges pela metade, fazendo uma pilha de jornais repetidos de travesseiro, parecia dormir na cadeira de balanço, diante da cama ainda feita da véspera.

O inusitado de sua morte mereceu um registro de cinco linhas no jornal que comprava e já não lia.

Extraído do livro "Nada não e outras crônicas", Editora Mauad, de autoria do dono do Botequim."

Nenhum comentário: